03 junho 2014

Isso é Brasil: Jovem supera os obstáculos do dia a dia numa Copa do Mundo que poucos veem

Esbanjando habilidade, Daniel faz de uma movimentada avenida o seu Maracanã

Duas crianças espremem-se na janela do ônibus. É uma disputa silenciosa. Cada uma delas quer ver um pedacinho a mais do rapaz que faz estripulias com a bola enquanto o sinal da avenida Mário Melo, esquina com rua 13 de maio, bairro de Santo Amaro, Recife, está fechado. Camisa da Seleção Brasileira, número 10 às costas, o artista faz daquele naco de asfalto o Maracanã. Controla a bola na cabeça, a equilibra no pescoço, gira a perna enquanto toca na redonda em um movimento excepcionalmente bem coordenado. “É o Neymar”, divertem-se os moleques, ainda colados ao vidro no momento em que o acrobata espera as moedas. Não que ele se pareça fisicamente com o craque da Seleção. É mais magro, desprovido de dentes, carente de cuidados. Mas a associação é recorrente. Daniel Gonçalves, de 21 anos, chuteira rasgada, pobre, é o Neymar da vida real. Dribla as dificuldades com talento, retraça seu próprio destino com habilidade, supera obstáculos com os pés. E disputa a Copa do Mundo que ninguém vê.

Daniel não é natural do Recife. Nasceu em Gravatá, no interior de Pernambuco, e decidiu, há 30 dias, encarar a dura realidade da Capital. Não gozava de luxo algum na terra natal - mas pelo menos dispunha de um teto debaixo do qual podia descansar, no loteamento Cruzeiro. “Vim para cá em busca do meu sonho”, diz. Mas sonhos, bem sabemos, são touros bravos. É preciso dominá-los à unha.

Daniel sente isso na pele diariamente. O mundo, para quem não é Neymar, não é um lugar especialmente amigável. Para quem é subalfabetizado, só estudou até a quinta série e não tem dinheiro ou amigos, pior ainda. Enquanto faz malabarismo pelo Recife, Daniel come o que dá para comer, toma banho - de torneira, no Parque 13 de maio - quando é possível. Dorme no chão do Mercado da Boa Vista, a mochila como travesseiro, uma lâmina de papelão como colchão. “No segundo dia, um menino que dormia perto de mim roubou o celular que eu trouxe”, afirma - com o tom conformado de quem tem intimidade com os dramas cotidianos.

O roubo é algo com que Daniel tem de conviver o tempo todo. “No primeiro dia que ele chegou por aqui, roubaram umas bolinhas que ele tinha e deixou encostadas. Um rapaz passou, pegou e saiu correndo. A gente tentou ir atrás, mas não consegui alcançar ”, conta Simone Maria, dona de uma barraca que vende lanches na avenida Mário Melo. Desde que foi roubado, Daniel confia a ela sua mochila-travesseiro e seus poucos pertences enquanto o sinal fecha. Antes de chegar ao local onde hoje se apresenta, o artista ficou cerca de dez dias na praça do Derby. “Dava menos dinheiro, mas era melhor porque eu podia fazer mais coisas. Eu chegava a colocar e tirar a camisa dez vezes sem deixar a bola cair no chão”, lamenta.

As dificuldades não o desmotivam. Nem fazem-no perder a fé inabalável de que vai vencer o jogo mais duro que alguém pode enfrentar. “Vou chegar lá”, garante, todo tímido, sem estabelecer contato visual direto com o interlocutor. O “lá” a que ele se refere não é um lugar especialmente luxuoso. Daniel não fantasia com fortuna, carros, mansões. “Meu sonho não é ficar rico”, admite. Parece saber - mesmo num nível inconsciente - que é improvável conseguir isso submetido às condições em que vive. Ele é, afinal das contas, o Neymar oposto. Só deseja viver com dignidade, usando a arte como ferramenta. E, literal ou metaforicamente, sustentar-se com as próprias pernas. Para muita gente, parece pouco. Para ele, é tudo. É uma Copa do Mundo.

Circo - Daniel aprendeu a fazer malabarismos com a bola no circo Alakazam, baseado em Gravatá - e que roda pelas outras cidades do Vale do Ipojuca. No começo, sua função era simples: ajudar a armar e desarmar o picadeiro. Aos poucos, gradativamente, aprendeu a equilibrar a pelota de várias maneiras. O dono do estabelecimento identificou o talento e o convidou a virar artista de circo. O vínculo durou meses - e só acabou quando “Alakazam” (é o nome pelo qual Daniel o conhece) parou subitamente de pagá-lo.

Dificuldades vêm de muito tempo

A família é a principal peça do mosaico pessoal de Daniel. Ela explica muito do que ele se transformou: um sujeito que lê mal, escreve menos ainda e que saiu da escola na quinta série do Ensino Fundamental - não sem repetir algumas classes antes disso. A estrutura que o jovem gravataense teve em casa nunca foi das mais firmes. Pelo contrário: a família dele teve alicerces de gelatina.

A mãe era alcoólatra. Maria das Graças - nome tatuado no antebraço esquerdo de Daniel - lutou durante muito tempo, mas não conseguiu livrar-se do vício. Morreu em janeiro último. “Eu morava com minha avó. Minha mãe vivia num barraco do lado. Um dia, a avó foi acordá-la, mas ela não acordou”, lembra Daniel, evitando fitar o ouvinte - coçando as pernas como refúgio para o contato direto.

Com o pai, a comunicação não é constante. O segundo casamento de Agnaldo impede que eles se vejam com muita frequência. Quando se falam, as palavras que o pai dirige a Daniel, em geral, não são amáveis. “Ele é daquele pessoal de sítio, né? Bem ignorante. Não entende essas coisas que eu faço para viver”, diz. “A verdade é que meu pai não acredita muito em mim”, completa - de um modo tão objetivo que não revela nenhuma noção particular do quanto aquilo é duro.

Daniel tem quatro irmãos - um dos quais trouxe consigo para o Recife. Luciano Severino da Silva não compartilha 100% do DNA dele. É filho do pai com a segunda esposa. “Ele fumava maconha lá em Gravatá. Quando começou a fumar pedra (crack), vim para o Recife e trouxe ele comigo”, conta Daniel, que não usa drogas. “Só bebia e fumava, mas até isso parei depois que comecei a frequentar a igreja”.

Os dois, Daniel e Luciano, enfrentam rotina parecida. Dormem debaixo do mesmo box no Mercado da Boa Vista, enfrentam as mesmas dificuldades. E lutam, aí cada um a seu modo, para resistir às adversidades e vencer um destino que foi traçado antes mesmo de eles chegarem ao mundo. Quando a reportagem da Folha de Pernambuco encontrou Daniel, seu irmão não estava com ele. Já andava pela cidade à procura de algo para fazer. Quem precisa batalhar para sobreviver, não pode perder tempo.

Firme ao pensar no futuro

O Centro POP Glória, na rua da Glória, Boa Vista, é o local onde Daniel Gonçalves faz suas refeições. O espaço é especializado em receber pessoas em situação de rua. Essa unidade em particular não serve como albergue - mas oferece comida e a possibilidade de um convívio grupal para uma parte dessa população. Iris Liliosa é a educadora social do lugar. Lembra de Daniel como alguém extremamente retraído. E firme de um modo bem característico. “Uma das coisas que ele nos pediu foi para imprimir cartões para ele divulgar o trabalho dele”, recorda.

A ideia de Daniel é distribuir os cartões no sinal, após cada apresentação. “Quero fazer eventos, mostrar meu trabalho em festas”, diz. Ele deseja andar com as próprias pernas. Mas, enquanto não consegue independência financeira, tem outras opções para sair da rua.

A Prefeitura do Recife por meio do Instituto de Assistência Social e Cidadania (IASC), autarquia vinculada à Secretaria de Assistência Social (SAS), oferece diversos serviços para acolher pessoas em situação de rua. Há equipes especializadas em abordar os moradores das vias públicas. “Há grupos que trabalham de dia e à noite. Os grupos conversam com eles, perguntam por que foram parar na rua, descobrem se têm envolvimento com drogas. É um trabalho de apuração”, explica Rossana Fonseca, coordenadora da equipe noturna do projeto.

O primeiro objetivo é reinserir as pessoas nas famílias. Quando o morador de rua em questão é de outra cidade, há uma república para abrigá-lo enquanto o IASC se comunica com o assistente social local para tentar a reintegração na cidade de origem. Mas se, como Daniel, a pessoa não quiser retornar à terra natal, existe a possibilidade de abrigamento.

As probabilidades, porém, jogam contra Daniel de imediato. Como a demanda de pessoas em situação de rua é muito grande, a rede de abrigamento não consegue acolher a todos. Crianças, idosas e mulheres grávidas ou com filhos pequenos têm prioridade. Homens, adultos, como o malabarista da bola, precisam entrar numa fila. Mas a rotatividade é grande. “Todas as quintas-feiras, a gente se reúne para fazer estudos de caso. E aí a gente escolhe em conjunto quem vai entrar no abrigamento”, diz Rossana.

Uma vez lá dentro, o ex-morador de rua é trabalhado pelos profissionais da unidade designada para se reintegrar socialmente e ter autonomia econômica. O passo seguinte, se tudo der certo, pode ser o aluguel social. A PCR banca seis meses de aluguel para essas pessoas - desde que elas apresentem condições para se sustentar sozinhas depois de terminado o prazo semestral.

FolhaPE
 
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