05 março 2013

Aborto: Uma história de violência, excomunhão e fé

Papado de Bento XVI foi marcado no Estado pela excomunhão de uma menina de 9 anos, autorizada pela Justiça a abortar

Uma Igreja que segue à risca. De leis que ignoram circunstâncias. De razões que não enxergam sofrimentos. No papado de Bento XVI, uma passagem ocorrida em Pernambuco ganhou as manchetes do mundo. Em março de 2009, o então arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, excomungou uma menina de 9 anos de Alagoinha, Agreste do Estado, que realizou um aborto legal de gêmeos. Engravidou após ser estuprada pelo padrasto. A pena eclesiástica se estendeu à família da vítima e à equipe médica que participou da intervenção cirúrgica no Centro de Atendimento Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife. Teólogo fiel ao direito canônico, Bento XVI defendeu a medida tomada por dom José, enquanto o mundo repudiava o que classificou como insensatez do Vaticano. Quatro anos depois, o Jornal do Commercio reencontrou a garota. Pela primeira vez, ela quebrou o silêncio e concedeu entrevista.

A reportagem foi recebida pela mãe da adolescente numa casa humilde em Pesqueira, também no Agreste, para onde a família se mudou desde que o caso repercutiu e o acusado foi preso. “Deus é maravilhoso. Eu pensava que não conseguiria. Mas agora estou bem. Durmo em paz toda noite”, contou a dona de casa, que tem uma segunda filha, de 18 anos e portadora de necessidades especiais, também vítima de abusos sexuais por parte do padrasto.

Mesmo excomungada, a mãe teimou. Pegou as filhas pelo braço e entrou a pulso duas vezes na igreja católica de Alagoinha. Não se sentiu bem. O padre olhava de lado, falava mal. Foi na Igreja Mundial do Poder de Deus, evangélica, que a família deu sequência aos laços com Deus. Não reatou porque nunca desprendeu. A quebra com o catolicismo foi unilateral, partiu só da Igreja. “Eles foram muito duros, muito ignorantes. Não precisava disso tudo. Não cometemos nenhum crime. Foi tudo legal".

A conversa, de repente, é interrompida por um foguete. A menina rasga a porta, larga a mochila cor-de-rosa no pufe feito de garrafas de plástico, dá um “bom dia, boa tarde, sei lá” e grita que está com fome. O sorriso no rosto é invencível. Resistiu ao trauma, à violência doméstica, à excomunhão. Está no 7º ano do ensino fundamental, não desgruda da irmã e quer ser cantora quando crescer. Gosta de estudar, é viciada em televisão, adora desenhar e não passa dois minutos sem bulir no celular. É nele que ela armazena um arsenal de fotos com caras e bocas típicas das garotas da sua idade.

E ela é isso, só mais uma menina de 13 anos cheia de sonhos, que frequenta a igreja duas vezes por semana e quer ter filhos, mas só num futuro bem distante e fruto de amor. “Hoje me sinto bem na igreja. Sou solteira enviuvada, fã de Joelma e adoro crianças. Prefiro cuscuz a arroz com feijão”, brinca, embaralhando tudo, sôfrega por viver.

A adolescente só fica monossilábica ao responder alguma pergunta sobre o passado. Aí as frases longas e apressadas viram “sim” e “não” quase mudos. Mas basta o assunto mudar que o sorriso volta sem força. “Minha filha é uma bênção de Deus”, define a mãe, que borda, vende sacolé e faz doces.

LEI DE DEUS - Na tranquilidade do Convento de Santo Alberto dos Carmelitas, em Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo emérito de Olinda e Recife, recebeu a reportagem. Sereno, o homem que foi para-raio das críticas na época em que o caso explodiu esclarece não ter sido o responsável pela excomunhão em massa. “Existe um cânon que diz que quem cometer aborto está excomungado. Isso não quer dizer que vai para o inferno, porque a pessoa pode se arrepender e ser perdoada. Mas eu só declarei a excomunhão. Ela ocorre automaticamente e eu só fiz anunciá-la. Apenas cumpri o direito canônico”, afirma.
Dom José diz ter recebido o apoio do Vaticano e da Igreja em diversos países. “Esta menina, muito jovem ainda, engravidou e foi induzida a praticar um aborto. O quinto mandamento da lei de Deus é não matar. Ninguém pode tirar a vida de um inocente que nem nasceu ainda. Por isso, o papa e a Igreja têm a obrigação de proclamar a lei de Deus”, frisa.

Indagado sobre o fato de que o aborto foi legal sob o ponto de vista do Estado brasileiro por ter ocorrido após um estupro, o arcebispo emérito de Olinda e Recife foi enfático: “Nós não podemos fazer distinções”.

Os médicos que acompanharam o processo e participaram do aborto da menina de Alagoinha vivem alheios à excomunhão. O coordenador de Saúde da Mulher da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Olímpio Moraes Filho, foi um dos envolvidos na cirurgia realizada no Cisam. De família católica, batizado, já não frequentava muito a igreja. A decepção atingiu seu nível máximo com a postura da instituição religiosa diante do caso que comoveu Pernambuco e rodou o mundo.

“Fui me desiludindo e me afastando justamente por essas posições, que não condizem com o que vivemos. Esse episódio só fez somar. A Igreja tem os dogmas dela, pode ser contra, mas não pode impedir, interferir, personalizar. O Estado é laico e o procedimento era legal. Fizemos intervenções posteriores, é uma coisa frequente. A pessoa não deixa de ser católica porque foi violentada, engravidou e passou por um aborto”, critica. “Espero que o novo papa seja menos conservador e avance nesse quesito”, complementa ele, que integra o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe).

Também excomungada, a diretora do Cisam, Fátima Maia, lembra que, além de tudo, era uma gravidez de risco. “Do ponto de vista da assistência, a paciente precisava de atendimento. Somos um serviço de saúde, e não uma igreja. Continuamos achando que fizemos o certo. Esse episódio não alterou o perfil do nosso atendimento”, explica ela.

JCOnline
 
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